3.8.13

Chateau maison 2013, RP 100, WS 100


Por questão de elegância, restaurantes situados em regiões vinícolas costumam listar em sua carta, além dos produtores locais, vinhos de outras procedências. No entanto, é sabido que, por questão de inteligência e bom senso, estando na Borgonha deve-se beber pinot noir, em Bordeaux corte bordalês e, no Alentejo, a combinação local das 11.857 uvas que só nascem em Portugal. 

Seguindo a mesma lógica, deve-se pedir malbec em Buenos Aires, tannat em Montevidéu e caipirinha de caju em Salvador. Entretanto, a cartilha do bom freguês recomenda que, se o restaurante dispor de sua própria produção de vinho, esta será sempre a melhor opção.

Em alta enologia denomina-se chateau maison ou chateau de table grandes vinhos como aqueles que, por exemplo, são produzidos em certos quintais de tavernas gregas, bistrôs provençais e cantinas de Bento Gonçalves. 

Sua grandiosidade reside no fato de não ser possível nem necessário debater taninos, discutir notas olfativas ou filosofar acerca do estágio atual de evolução e tempo de guarda. Basta beber. Com certeza, irá harmonizar com a sugestão do orgulhoso chef-enólogo e, provavelmente, terá o melhor custo-benefício.

A quem deseja atribuir pontuação a um chateau maison é recomendado sempre dar a nota máxima, tomando por base a mesma lógica que Robert Parker e a Wine Spectator empregam quando avaliam certos vinhos com interesses em grandes mercados. E, para provar que não há nada de tendencioso no processo, aos da serra gaúcha convém fechar o cálculo em 99,9.  

2.8.13

Degustações verticais



Séculos antes de Yuri Gagarin, Abu Musa Jabir ibn Hayyn já havia subido aos céus. Não a bordo de uma vostok, mas pilotando al-ambiq, o fogão no qual destilou o elevante espírito do al-kohul.

Mas o grande alquimista, também chamado Geber, não foi o primeiro homem a se aventurar no domínio dos deuses. Os sumérios já haviam estado lá para conhecer a casa do herói Gilgamesh, também chamado Órion. Visitando musas mitológicas, os antigos gregos também passearam por lá.

Séculos antes do cosmonauta russo afirmar que a Terra é azul, o persa Omar Khayyán, não por acaso astrônomo e grande entusiasta do vinho e das paixões transitórias, descreveu o firmamento como uma grande taça emborcada.

À maneira de Geber, pode-se visitar o espaço a bordo de um Cinque Stelle. Do alto de seus 15.5 graus de al-kohul, chega-se rápido à constelação formada pelas uvas corvina, rondinella e molinara, também chamada Amarone della Valpolicella.

Para quê subir ao céu? questionam esses antiparnasianos degustadores horizontais de vinho. Ora direis, pergunte ao Bilac. 

À maneira dos contemporâneos de Platão, nós, que não tememos a cruz do sul nem a espada do gigante Órion, seguiremos radiantes em direção aos luminosos braços de Andrômeda e à cintilante cabeleira de Berenice.

31.7.13

Da Solidão

Eduardo Lima


Éramos dois e o silêncio. Aos poucos foram chegando aromas, intimidade, lembranças. E a mesa se encheu de sorrisos, beijos, algazarra de crianças brincando felizes, fraldas trocadas no meio da noite, aniversários, cristais se encontrando, banhos de cachoeira, lugares mágicos, fotografias de encher um baú e gente. Tanta gente que o espaço ficou pequeno. 

No meio daquela confusão, pisquei para a taça de beaujolais e saí sem me despedir de todas aquelas reminiscências de uma vida acre-doce de comédia dramática argentina. Nem bem me levantei, esbarrei na imagem de Verônica que, mais uma vez, insistia em que retomasse o Pisando em Uvas. 

Voltei como saí, à francesa.

9.4.11

De como acabei seduzido pela negra Fernet Branca


O encontro deu-se assim: diante do balcão do único bar situado na praça central da aldeia, pedi à atendente pela tradicionalíssima fernê bianca. Ela olhou de modo esquisito e serviu dois dedos de um líquido escuro e espesso onde boiava uma pedra de gelo. Recusei e insisti com o miserável italiano de que disponho que gostaria mesmo era de uma fernê bianca. A garota deixou o líquido negro sobre o balcão, foi para o fundo do bar e retornou com a garrafa da qual leu, com leve irritação, os dizeres do rótulo: Fernet Branca, capice, Fernet Branca.

Pelos idos de 1845, o farmacêutico milanês Bernardino Branca misturou destilado de uvas a uma infusão contendo todas as ervas de que dispunha na farmácia, dizem que mais de 40. Inicialmente lançado como xarope contra cólicas menstruais, constipação intestinal e complicações digestivas, o elixir de alto teor alcoólico acabou se destacando mesmo pela propriedade de curar ressaca. Semelhante cura semelhante, dizia Samuel Hahnemann o fundador da Homeopatia e, deste modo, o digestivo ganhou o mundo, apesar do gosto extremamente amargo e do aroma de antiséptico bucal.


No primeiro gole você descobre estar diante da pior bebida do mundo. O segundo reforça essa constatação. Mas, se você for persistente e chegar ao terceiro gole, vai se dar conta de que já está física e  e emocionalmente dependente do genial licor produzido nas barbas da Barbera, a consagrada uva do piemonte.  Genial por trazer em si, ao mesmo tempo, o veneno, álcool a 45 graus, e a cura, 45 ervas aromáticas, muitas delas regenerativas da função hepática.


Seduzido e embriagado pela longa e escura noite espagírica perdi, além da vontade de beber vinho, amigos, emprego e boa parte do fígado.  Mas, se a Fernet é negra,  a vitis é vinífera e Baco sempre conduz ao caminho das uvas, ainda que por videiras tortas. Assim, retomei o gosto pelo vinho. Não por intervenção direta do senhor das uvas, é verdade. Mas por intermédio de outro santo espírito, a Fada Verde que, numa elevada conversa diante de uma garrafa de Absinto 72 graus, citou Buda e me apontou o caminho do meio.


Madame B. não chegou a terminar o primeiro gole e, lúcida, mantém sobre a negra Fernet Branca a primeira impressão.


1.3.09

Da Frugalidade



Feliz foi Meneceu. Numa tarde ensolarada o carteiro entregou em sua residência, na capital da Magna Grécia, uma carta de seu amigo Epicuro.

No pergaminho, hoje intitulado Carta sobre a Felicidade, o filósofo nascido em Samos confiava ao amigo ateniense os segredos para se apreciar a boa mesa e os demais prazeres da vida.

Para o grande mestre filósofo, muitas vezes mal interpretado e evocado em vão pela insaciável sociedade de consumo, prazer não é algo que deva ser buscado desmesuradamente e a todo custo. Isso só vai levar à dor, frustração e ao sofrimento. Para Epicuro, a idéia de prazer é, exatamente, viver sem dor, frustração e sofrimento.

Dizia Epicuro a Meneceu:
" Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta. Em outras palavras: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem tem fome."

Lembrei de Epicuro quando comprei o vinho de colono Telmo e Sônia, produzido de modo artesanal na Serra Gaúcha.

Antes de abrir a garrafa, tive o cuidado de pensar na melhor harmonização para tal vinho. Preparei um farto sanduíche de mortadela e servi o líquido de cor violeta vibrante em copo de geléia de mocotó, repleto até a boca.

Convidei Madame B. para o repas mas esta, alheia à ética do prazer de Epicuro, declinou sem explicações.

A sós, e em profundo silêncio, fui comprovando de modo empírico os ensinamentos de Epicuro a Meneceu. Ao fim da garrafa, tendo atendidas as necessidades básicas do corpo, descobri que o espírito também havia sido satisfeito. E fui tomado por uma imensa e absurda felicidade.

25.11.08

Metáforas. Ou, como não me tornei um sedutor falando de vinhos.


Dizem que vinho é poesia. Deve ser. Não o fosse, como explicar a profusão de aromas, cores e sabores que dele se desprendem em toda a sorte de análises, resenhas, notas e fichas de degustação criadas para transformar o amante do vinho naquele que pretende ser muito mais do que lhe confere, em significado e posição, a soma dos radicais que lhe restringem, o enófilo.

O que dizer da cor de ouro escuro de jóia antiga recém exposta ao sol, do aroma de feno cortado numa clara manhã de outono ou do sabor potente de taninos estruturados e bem domados como cavalos de raça em selas inglesas? Metáforas, diria o leitor. Inofensivas metáforas. Até ai tudo bem, não fossem as mesmas metáforas aglutinadoras de uvas e estrelas dos poemas de Neruda, substâncias perigosamente corrosivas se manipuladas sem a devida experiência.

O artigo parecia ser uma inocente reportagem sobre a Toscana. Não me lembro do autor, nem do que dizia. Recordo apenas da metáfora assassina.

... convém experimentar os saborosos supertoscanos da Casa Antinori, que se destacam por seus portentosos taninos atléticos e musculosos

Interrompi imediatamente a leitura e fui procurar o apoio de Madame B. Esta, para meu maior espanto, não apenas concordou com o autor, como também considerou bastante pertinente e sugestiva tal definição.


Confesso a você, querido leitor, que esgotei por completo meu arsenal de idéias sedutoras a respeito do vinho. Partidário dos populares e esqueléticos beaujolais, tenho perdido noites de sono pensando no inevitável momento em que, numa mesma mesa, terei entre mim e Madame B. um nobre italiano superdotado de taninos halterofilistas.

2.3.08

O bom vinho não precisa de rótulo



Os americanos costumam dizer que se você quer que uma coisa saia bem feita, faça você mesmo. Assim, os inventores do do-it-yourself criaram sua receita de como elaborar um super californiano, digamos assim, em apenas três etapas. Primeiro: lance ações em Wall Street. Segundo: escolha uma celebridade para dar nome ao vinho e enfeitar o rótulo. Terceiro: compre uma vinícola no Napa Valley.

Hoje é fácil encontrar nas boas casas do ramo Marilynn Merlots, Elvis Cabernets, Coppola Chardonnays e os não tão coloridos, mas não menos célebres, varietais da família Mondavi. Difícil mesmo é encontrar um autêntico home made wine criado e nascido nas férteis terras do Napa.

Metade das grandes vinícolas da Califórnia começou como vinicultura de subsistência, produzindo Zinfandels no quintal de casa para acompanhar o perú de ação de graças. O negócio prosperou graças ao terroir e ao empreendedorismo estadunidense. Alguns poucos produtores, no entanto, continuaram fazendo vinhos à moda antiga. Com carinho, paciência e o mesmo cuidado com que as avós daquela região assavam tortas de maçã.

Apenas a indicação 02 CAB escrita com esferográfica azul sobre a parte visível da rolha. Ganhei as duas garrafas de meu amigo Glynn Baker, produtor, junto com sua esposa deste autêntico californiano do Napa, nascido e criado no mesmo código postal dos Opus One e dos Caymus, seus mais renomados vizinhos.

Observando a garrafa nua, tive vontade de vestí-la com uma gravura de Picasso e dar-lhe um nome qualquer como Mouton ou Rothschild. Bobagem, pensei. Como bem dizem os franceses, o bom vinho não precisa de rótulos.